terça-feira, 11 de outubro de 2011

As impressões de Bruna Ventura


Ontém eu fui ver o espetáculo "Depois daquela viagem", baseado no livro de Valéria Piassa Polizzi, direção de Abigail Wimer, em cartaz as quartas e quintas, até 20/10, no Sesc Consolação, as 20h.

E, sabe, eu irei de novo e pretendo levar os meus primos, o meu irmão, a minha avós, os meus amigos. É um espetáculo para jovem. Completamente adequado a faixa etária, o que não significa, em alguma hipótese, que os adultos estejam impedidos de desfrutar, pelo contrário, porque os temas tratados são de relevância universal. E todos PRECISAMOS parar para pensar nessas coisas, sim. Por mais desconfortáveis que elas sejam (sabe aquela história de o amor ser importante, porra? Pois é... tem a ver com isso).

Confesso que eu estava com medo de assistir a montagem. Quando a minha amiga Renata Fasanella, atriz que faz, de uma forma bonita, trabalhada e entregue, uma das facetas da protagonista, me contou que havia passado no teste para esse projeto, temi que fosse mais uma dessas peças caça-níquel, de auto-ajuda, onde a poesia é substituída pelo didatismo barato, chato e bobo... e olha só, quantos rótulos eu coloquei, só nesse primeiro pensamento pseudoanalítico e repleto de pré-conceitos (afinal, eu nem sabia mesmo como é que eles conduziriam tal processo)... Talvez por essa minha tendência a rotular toda e qualquer coisa cotidianamente, o tema de maior relevância enquanto estive sentada na poltrona do teatro ontém, foi o preconceito.

Eu li o livro Depois Daquela Viagem em 1997, ano de lançamento do próprio, porque o meu pai, policial rodoviário, aparentemente ajudou algum dono de livraria na estrada e ganhou alguns exemplares diversos. Dentre eles, o tal. E eu havia lido uma entrevista sobre ele com a autora, numa dessas revistas adolescentes, que eram muito comuns nos meus tempos teenagers... Eu tinha 10, quase 11 anos e já havia visto pessoas próximas morrerem de AIDS. E aquilo era assustador... a aparência física dos pacientes terminais... Sempre me impressionei com essas coisas... e as descrições da minha mãe, técnica de enfermagem. Descobrir-se portador do vírus era sentença de morte. E rápida. Claro que além de tudo vinham os rótulos... porque a doença era de viado, artista, drogado, toda essa gente que era classificada como Grupos de Risco. E ai, se alguém começasse a emagrecer demais... era "aidético", claro. Então veio o livro da Valéria. E, pela primeira vez, eu tive uma perspectiva outra de tudo aquilo. A vida. Pela primeira vez eu pensei no fato de que a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, em si, era apenas uma característica, um fator de mudanças numa vida, assim como casar, perder alguém, amar alguém, sofrer um acidente, ter um filho, ter o coração partido, perder um membro do corpo... essas coisas que mudam a vida da gente para sempre e que, se a gente aprende a (con)viver, e se torna um ser humano melhor. Repeti a leitura e emprestei o meu exemplar para alguém que nunca me devolveu (e tudo bem, porque os livros estão é para serem lidos, para viver de mão em mão, por aí). E foi uma leitura tão importante, que eu ainda tinha frescos trechos inteiros aqui, dentro da cabeça...

E aí, ontém, quatorze anos depois da minha primeira leitura, ali estava, encenado. Eu, que gostei de todos os trabalhos que a Abigail dirigiu, desde que a conheci, e sempre achei bem bacana mesmo o quanto ela trabalhava humanamente com os atores (e isso faz tanta falta no teatro, no cotidiano... essa humanidade...), fiquei realmente surpresa com a energia e o envolvimento dos quatorze jovens atores, conduzidos por ela, bem diferentes, com vidas bem diferentes, dando um cacete em muito GRUPO de teatro que se vê por aí. E porque assim foi? Porque a Abigail, e cada um dos meus quatorze companheiros de profissão, jovens e meio crus, como eu, além dos outros membros da equipe, entenderam a necessidade de se trabalhar com o material HUMANO que é a força motriz do teatro. E as falhas técnicas, o que ainda não amadureceu, os defeitos, as escorregadelas, as opções não tão legais de encenação, tudo isso existe e contribui para humanizar, ainda mais o que vemos em cena. Se trata de um teatro de jovens, para jovens, com tudo o que isso significa.

E o que eu vi, realmente, foi uma Valéria Polizzi (brechtianamente!) muito bem representada por tres atrizes talentosas e esforçadas, a energia e o prazer contagiante de estar em cena da Daphne Bozaski, menina de puro carisma e talento bruto a ser lapidado pela prática (porque isso é trabalho de ator, né!), pela força e familiaridade com o palco, que tem a Naiara de Castro, e pelo trabalho duro, a disponibilidade e o brilho dos olhos da Renata Fasanella. E o elenco todo: Camila Minhoto, Leonardo Stefannini, Maria Bia, Mariana Leme, Eliot Tosta, Geraldo Rodrigues, Osvaldo Antunes, Carol Capacle, Giovani Tozi, Rafael Sola e Charlene Chagas, com uma disponibilidade, de grupo mesmo, para o jogo e para fazer acontecer... um entusiasmo sabe, daqueles que fazem a gente sentir prazer como espectador, e nem se dar conta que se passaram quase duas horas das nossas vidas. Eu vi sensibilidade, inteligência e humanidade.

E eu vi a Valéria, de verdade, no final da peça. Porque ela estava lá, acompanhando o processo de encenação daquele que foi o seu primeiro livro. E, sim, ela continua bem, bonita e vivendo.Ela nem imaginava o quanto fez parte da minha adolescência, claro. Eu precisei dizê-lo e abraçá-la por todas aquelas crônicas que ela escrevia e eu acompanhava, mensalmente, na revista Atrevida, por ter escrito esse livro e me proporcionado outras visões, diferentes daquelas da minha casa sobre o HIV... e sobre o preconceito... É bem difícil se livrar dele, eu sei bem... via de mão-dupla... a gente nutre alguns, a gente sofre outros...

Depois, fomos jantar. E depois de jantar, eu ainda saí com a Rê, para beber... e não parei de pensar em diferenças, preconceitos e mudanças a noite toda. Ainda estou pensando e espero pensar sempre. Espero também viver com as aplicações práticas, porque para isso servem as reflexões, para desencadear ações. Creio que essa capacidade provocativa, foi para mim, o trunfo maior do espetáculo e do livro. Que bom. Porque o mundo anda precisando mesmo de Re- flexões, de flexibilidade, de humanidade, de amor... (tá, é brega mesmo, mas é verdade!).

Aos envolvidos todos, fiquei triste e feliz e esperançosa e estranha e pensando. E isso é bom.

Aos que não viram, recomendo.

Aos que não leram, recomendo.

Que venham viagens, sempre transformadoras. E que nós desenvolvamos a capacidade de só repetir as boas.


Lindas impressões!! Obrigado por compartilhar, Bruna!

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